"Que me seja permitido, no momento, apresentar-me como William Wilson". Esse é o começo do instigante conto de Poe que me deixou em dúvida sobre como interpretá-lo.
O conto, narrado em primeira pessoa, como, aliás, todos de Allan Poe, fala de um personagem que vive para satisfazer o próprio ego, permeado por uma vida de esbórnias e excessos. A história perpassa pelas fases da Infância, Adolescência e Maturidade, todas apresentando mostras de pensamentos vis e ações perversas de um ser acostumado em ter tudo, em influenciar outros e predominar sobre todos.
Há percalços, contudo, e estes acontecem desde a chegada de uma figura com ele muito semelhante, que carrega as mesmas características físicas, a mesma sagacidade e a mesma alcunha. Por outro lado, provido de caráter e senso moralista, está sempre a lhe censurar, causando-lhe profundo mal estar e raiva.
O auge deste amargor se dá quando o personagem principal, após desferir um golpe mortal contra seu antagonista, percebe que atacou a si mesmo.
A luta travada pelo personagem contra si e o derradeiro fim impressionam ao passo que em paralelo nos deixam à deriva sobre quais foram as intenções do autor. Lançando mão da alegoria como ferramenta de trabalho e de uma linguagem altamente rebuscada, Poe nos conta a história de um homem assombrado desde a infância por um "sósia", que é, na verdade, o reflexo daquilo que ele, o narrador, gostaria/poderia ter sido e não foi, sua antítese, se tivesse feito escolhas diferentes e traçado caminhos distintos.
O conto parece ter uma conotação moralista quando nos leva a crer que ações ruins nos levam a um final infeliz, ou seja, o famoso "Quisquis iniqua facit, patiatur iniqua, necesse est".
Poe não era um moralista e levava uma vida boêmia. Creio que a narrativa poderia ser facilmente invertida, com o narrador carregado de puritanismo e o Outro tentando levá-lo para o submundo do hedonismo. Edgar Allan Poe quis enfatizar nossa curiosidade pelo que está oculto ao olhos nus, ao óbvio e, ainda, à possibilidade que temos de assassinar-nos para ressuscitarmos com uma personalidade nova. Em outras palavras, termos uma nova chance. William teve várias oportunidades de fazê-lo, pois em sua vida mudou seu fenótipo por diversas vezes, tendo a oportunidade de se "modificar". E mais, talvez seu subconsciente o quis, mas sua mente e costumes viciados não o deixaram. A situação drástica do último movimento da narrativa o possibilitou de renascer e assim o fez, como mostra o trecho do conto:
"Venceste, e me rendo. E contudo, daqui por diante também estás morto - morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim existias - e, em minha morte, vê por esta imagem, que é a tua própria, quão absolutamente assassinaste a ti mesmo." Claro está que há uma multiplicidade de interpretações, mas por que não estaria válida a minha?